Réplica do texto: A Çituassão está gramática!, da Profª Drª Marly A. Cardone
Surpreende-me alguém que se diz doutora escrever uma coisa dessas. E, como linguista, cabe-me o papel de fazer alguns questionamentos. Não ao conteúdo factual, pois não tenho argumentos nem contra nem a favor da política brasileira, mas ao conteúdo lexical, sintático e semântico do texto, ah, esses sim, merecem ser comentados.
Como “Advogada e profª de Direito”, a “doutora” deveria saber que uma carta aberta como esta, aliás, um spam, tem alcance incalculável e é capaz de influenciar a opinião pública. Só que, quando mal redigida, causa efeito cômico e contrário ao esperado. Primeiro, porque pessoas analfabetas funcionais não conseguem ler e entender mesmo. Então, nesse caso, o texto não vai atingi-las de qualquer modo. Segundo, porque qualquer pessoa que tenha noção da língua portuguesa vai achar ridículos os trocadilhos usados pela doutora, que não consegue fazer sua “análise sintática”, apresentando seu “sujeito oculto” e o “predicado” da frase.
Acaso basta achar o sujeito e predicado para fazer análise sintática? Análise sintática consiste em dividir a frase e classificar suas partes constituintes para avaliar a função de cada elemento no conjunto. Isso implica detectar relações entre os elementos e interpretar os sentidos estabelecidos por eles. Para descobrir a função sintática de um termo, leva-se em conta: a relação – isto é, se o termo está associado a um nome ou a um verbo; a forma – qualquer marca gramatical capaz de distinguir uma função de outra; o valor – o significado da relação estabelecida entre o termo analisado e o ponto de referência. Ou seja, analisa-se se uma frase está na voz passiva ou na voz ativa, se o predicado é verbal ou nominal, se há objeto direto ou indireto. Localiza-se os adjuntos, advérbios, adjetivos, vocativo, aposto, descobre-se a função sintática da oração subordinada e da oração coordenada; verificam-se os complementos verbais e nominais, etc...
Aposto que até mesmo a doutora tem que pensar bem antes de classificar uma oração em subordinada substantiva objetiva direta e muitas vezes buscar uma boa gramática. Não fosse assim, qual seria a função das gramáticas senão um livro de consulta? E esse conhecimento gramatical todo acrescentou o que na facção do texto da doutora? Aliás, a própria organização sintática dada a certos trechos pode exigir do leitor um esforço desnecessário de interpretação. Quanto mais sintaticamente simples uma frase, mais fácil de entender e menos ambiguidade e incoerências de interpretação pode causar. Mas não é isso que acontece no caso do texto em questão.
Além disso, qual o foco do texto? A autora ataca o MEC, o governo, os livros escolares, o presidente, a gramática... ataca até mesmo o Brasil inteiro e não dá continuidade a nenhuma ideia em seu texto cheio de generalizações. Fosse um texto de vestibulando, seria coletado junto às pérolas do vestibular tamanho o nível de coloquialidade, frases-feitas e por aí vai. Mas é de uma “doutora”.
Nunca vi um texto mais cheio de preconceitos, com frases-feitas como “Soltando totalmente a Franga” e referências aos homosexuais como pessoas “Homoafetadas”, como se o homossexualismo fosse uma doença que “afetasse” as pessoas, do mesmo modo como afeta a autora. Depois de ofender os homossexuais, a autora parte para o ataque ao ex-presidente, que, segundo ela, “nunca acertou uma concordância na vida”. Decerto que o ex-presidente, mesmo sendo semi-analfabeto, é mais culto que algumas pessoas que se autodenominam “doutoras”. Sentindo-se dona da verdade, faz acusações sérias “a única concordância que o Lula aceita é a concordância verbal, a que trata do uso das verbas públicas”. Se ele usa de verbas públicas ou não, isto não vem ao caso. Interesses políticos à parte, não tenho provas que o incrimine, não me cabe provar o contrário e acredito que à autora do texto também não. Mas colocar “verbal” e “verbas” no mesmo paradigma lexical é algo que a gramática normativa que a autora tanto defende não admite e coisa de quem não está nem aí para acertar as concordâncias.
Dando continuidade ao seu texto, ao mencionar que “grana preta” é “um flagrante exemplo de preconceito linguístico”, a autora claramente confunde preconceito linguístico com preconceito racial, que são duas coisas totalmente distintas. Mais uma vez, junta dois conceitos díspares às suas generalizações. Ao modificar o vocábulo para “grana afro-descencente”, aí sim a autora incorre em preconceito, ridicularizando impunemente os afro-descencentes. Acaso posso dizer que a coisa tá afro-descencente para o lado da autora?! Se pudesse, o faria, mas isso já é uma preterição.Antes de entender o Brasil, acredito que a autora deveria procurar entender mais da língua portuguesa. Eu começo sugerindo que ela leia as colunas de José Simão, na Folha de São Paulo. Ele consegue ser cômico e criticar a política sem cair na vulgarização banal da língua portuguesa.
TEXTO QUE ORIGINOU A RÉPLICA: A Çituassão está gramática!, da Profª Drª Marly A. Cardone
Eu não entendo o Brasil: se por um lado (no caso, o de trás), o STF (Soltando Totalmente a Franga) liberou as relações estáveis homoafetadas, por outro lado, o MEC resolveu perseguir a Língua Portuguesa, independente do gênero, número e grau.
Num caso flagrante de gramaticofobia, os livros escolares agora estão ensinando que falar e escrever errado não tem nada demais. Na verdade, o governo está implantando no país um novo método pedagógico e revolucionário: a Demagogia do Oprimido.
O MEC (Ministério dos Erros de Concordância) não vai parar por aí: o ministro Fernando Errahd vai tornar obrigatória a introdução no currículo escolar do idioma sindical, a Língua Presa.
Essa grande virada na educação brasileira começou com o presidente Luís Sintáxio Lula da Silva que nunca acertou uma concordância na vida. Alíás, minto: a única concordância que o Lula aceita é a concordância verbal, a que trata do uso das verbas públicas.
Por falar em Dramática, quer dizer, Gramática, vamos fazer um pequeno exercício de Análise Sintática.
Na oração: O MINISTRO PALOCCI FATUROU UMA GRANA PRETA, quem é o sujeito?
Bem, o ministro Pallocci não é sujeito. Sujeito à investigação.
O que existe, na verdade, é um sujeito oculto: o sujeito que pagou a consultoria mas não quer aparecer de jeito nenhum.
E o predicado? Não tem predicado, só tem prejudicado. No caso, o contribuinte.
A única coisa que está errada mesmo na oração é a expressão “grana preta”, um flagrante exemplo de preconceito lingüístico contra as minorias “diferenciadas”.
Na verdade, o politicamente correto seria: O MINISTRO PALOCCI FATUROU UMA GRANA AFRO DESCENDENTE.
Profª Drª Marly A. Cardone
Advogada e profª de Direito do Trabalho e da Previdencia Social
3 comments:
Realmente, porque todos querem dar palpites sobre a educação em nosso país? É engraçado como as pessoas se acham no direito de opinar sobre material didático, língua portuguesa etc sem ao menos ler e estudar um pouco. Pioram a situação quando misturam política, preconceitos variados e ainda querem divulgar tamanha barbaridade!!! Solange Lima e Milena Magri, concordo plenamente com o que dizem e ainda acrescento que devemos lutar mais para ocupar nosso lugar no mercado de trabalho e na sociedade não permitindo que pessoas mal informadas se atrevam a opinar
sem antes saber sobre o que falam. Sugiro a "doutora" leituras mais aprofundadas sobre Linguística Geral e Aplicada antes de exprimir seu parecer.
Abraços.
Josiani Rosa
Olá, Solange,
Compartilho com você sua revolta diante deste triste texto. Reforço, ainda, o desconforto em ver mal encaminhada a discussão a respeito do ensino de língua portuguesa a partir de um ponto de vista linguistico e não puramente normativo. Acredito que, justamente, porque se concebe na educação desse país um ensino que se pauta na "norma", no "certo X errado" e não na interpretação de contextos ideológicos, políticos e sociais - a começar pelo ensino de língua portuguesa - é que chegamos ao ponto extremo de vermos opiniões sem fundamento baseadas apenas em falsos moralismos circulando de modo inconsequente.
abraço,
Milena Magri
Não conheço o texto da Profª Drª Marly A. Cardone. Onde posso encontra-lo.
Em tua réplica tive uma ótima aula de língua portuguesa!
abração, volto.
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